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quarta-feira, 26 de junho de 2013

A FLAUTA E O SABIÁ

Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa de charão, jazia uma flauta de prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola suspensa ao teto, morava um sabiá. Estando a sala em silêncio, e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma ária.

Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar no estojo como a zombar do módulo cantor silvestre.

- De que te ris? indaga o pássaro.

E a flauta em resposta:

- Ora esta! pois tens coragem de lançar guinchos diante de mim?

- E tu quem és? ainda que mal pergunte.

- Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Mársias, lutou com Apolo e venceu-o. Por isso o deus despeitado o imolou. Lê os clássicos.

- Muito prazer em conhecer... Eu sou um mísero sabiá da mata, pobre de mim! fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá foi. Dize-me: que fazes tu?

- Eu canto.

- O ofício rende pouco. Eu que o diga que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar - e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, não me houvessem escravizado - se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.

- Que eu cante?!...

- Pois não te parece justo o meu pedido?

- Eu canto para regalo dos reis nos paços; a minha voz acompanha hinos sagrados nas igrejas. O meu canto é a harmoniosa inspiração dos gênios ou a rapsódia sentimental do povo.

- Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvir-te e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.

- Isso agora não é possível.

- Não é possível! por quê?

- Não está cá o artista.

- Que artista?

- O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso fazer.

- Ah! é assim?

- Pois como há de ser?

- Então, minha amiga - modéstia à parte - vivam os sabiás! Vivam os sábias e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim da tua vanglória há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorre o favor de alguém; não se movem se os não amparam; não cantam se lhes não dão sopro; não sobem se os não empurram. O sabiá voa e canta - vai à altura porque tem asas, gorjeia porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio, os que mais alegam triunfos. Flautas, flautas... cantam nos paços e nas catedrais... pois venha daí um dueto comigo.

E, ironicamente, a toda a voz, pôs-se a cantar o sabiá, e a flauta de prata, no estojo de veludo... moita.

Faltava-lhe o sopro.


Coelho Neto


O REFORMADOR DO MUNDO

Américo Pisca-pisca tinha o hábito de por defeito em todas as coisas.

O mundo para ele estava errado e a natureza só fazia asneiras.

- Asneiras, Américo?

- Pois então?!... Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustentando frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?

Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

- Mas o melhor - concluiu - é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha? E Pisca-pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!

De repente, no melhor da festa, plaf! uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio no nariz.

Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão mal feito assim.

E segue para casa refletindo:

- Que espiga!... Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-pisca, morto pela abóbora por mim posta no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.

E Pisca-pisca continuou a piscar pela vida em fora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza. 


Monteiro Lobato

JOÃO PREGUIÇA

Quando o pai de João Preguiça morreu, recomendou aos outros filhos que não abandonassem seu irmão, que era um pobre parvo.Como eles estavam vendo, passava a vida deitado numa rede sem querer trabalhar. Os moços, cumprindo o desejo do pai, levavam todos os dias a comida à rede de João Preguiça que não ingeria sem que qualquer deles lha desse pela colher. E assim acontecia quanto ao mais. Lá um dia, João Preguiça amanheceu morto na rede e irmãos trataram de convidar os vizinhos, colocado o corpo num "bangüê" dera uma estremeção. Todos correram a acudir e viram que João Preguiça estava ainda vivo. Um dos irmãos disse-lhe: - Isso é fraqueza, João. Acaso você quererá voltar para casa e aceitar um bom prato de arroz? João Preguiça, com uma vozinha enfraquecida, respondeu: - Quero sim... mas é com casca ou sem casca? O outro advertiu-lhe: - Com casca, João, com casca... - Então, nesse caso, mano, não quero não. E, dirigindo-se aos carregadores dos "bangüê", disse-lhes: - Toca pro cemitério! E esticou novamente no "bangüê".

 Lindolfo Gomes